Fonte: www.tdvadilho.com
Lettering Próxima Parada, escrita em letras tortas e estranhas

Contos ( A16 )

  |   Drama e Ficção

 |  12 minutos

Um rabisco. É isso. Nada mais.

Um rabisco. É isso. Nada mais…

Sentada em um banco estofado estava uma jovem na casa dos 25. Ela sacolejava, de leve, balançando pra lá e pra cá. Sua respiração era serena, tão serena que gritava calmamente o seu aliviar. Suas pálpebras, ainda fechadas, eventualmente se contraiam, indicando que ela ainda não chegara por completo, mas estava na iminência de embarcar.

Depois de algum tempo, sua boca começou a se abrir, e ela umedeceu os lábios, deixando o que restou da saliva voltar. Seu peito subiu carregando o peso restante, e o expulsou pelo ar. O alívio tomou conta por completo, e Raquel Paosques pode enfim acordar.

Deu certo?, pensou ela, até olhar para a esquerda e só conseguir ver borrões passando pra lá. Raquel não estava mais ao pé de sua cama, e na sua frente não havia mais nada que ela pudesse usar para se machucar. Sim, com certeza deu certo, pensou por fim, deixando um leve sorriso escapar.

O lugar era silencioso; mais silencioso do que se poderia imaginar. Talvez tenha sido por isso que Raquel demorou para notar. No banco, do outro lado do corredor, havia duas figuras sentadas, ocupando-se em conversar. A conversa, no entanto, era um tanto quanto estranha, porque se dava em uma frequência inviável para a jovem captar. Uma dessas figuras tinha o cabelo raspado e não deveria ter mais do que 11 anos de assunto para falar; já a outra tinha uma forma turva, irracional, inacessível e impossível de se interpretar.

Remoendo-se de curiosidade, Raquel se levantou e começou a se aproximar. Ela chegou bem perto, porém, com um gesto sutil, a figura turva lhe pediu gentilmente para aguardar. Raquel assentiu e deu espaço para as duas terminarem de conversar. Ela não sabia exatamente como havia compreendido a mensagem, mas logo concluiu que o fato de ter dado certo só poderia uma coisa lhe indicar: aquela figura turva era Aquilo que ela tanto pensava em encontrar.

A sensação de pressa não existia ali, e o tempo pouco parecia importar. Raquel Paosques ficou encarando os borrões até as duas terminarem de falar. Depois, pelos cantos dos olhos ela olhou a turvação se ajoelhar, ficando na altura da criança, para um abraço lhe dar.

A criança se aconchegou no abraço, e depois sorriu ao gesticular, era como se dissesse adeus, indicando estar pronta para desembarcar. O que parecia ser um trem então parou, e a criança feliz se virou, descendo rumo a névoa que envolveu todo o lugar.

Raquel olhou para o restante do vagão, fora Aquilo, não havia mais ninguém lá. Que sorte! pensou; ela seria a próxima à turvação abraçar.

Para onde a criança foi? — perguntou Raquel, mais preocupada em se fazer notar.

A figura turva se sentou de frente para a jovem e respondeu:

Eu não sei.

A voz era tão sincera e serena que levou a de Raquel a acuar, como se estivesse envergonhada demais para se mostrar.

A figura não se mexeu, apenas continuou lá. Imperturbável, era o que ela parecia ser, aguardando Raquel conseguir se situar.

Então… — murmurou a jovem por fim — O que vai acontecer com a menina?

Eu também não sei — respondeu a figura.

Não sabe ou não quer me falar? — insistiu Raquel, carregando uma certa trepidação no olhar.

Eu realmente não sei, Raquel.

Isso… — pigarreou — isso não te incomoda?

Não — respondeu a figura sem vacilar —, não me incomoda.

Mas, você é ela… ou ele… ou Aquilo… enfim, é você, não é?

Eu sou ela. Ele. Aquilo. Pra mim tanto faz… Eu sou apenas o que sou, e jamais serei algo a mais.

Sei… — comentou Raquel sem saber.

A forma sem forma, de alguma forma, sorriu com a boca e com o olhar.

A ilustração, feita digitalmente, retrata o momento da conversa entre a personagem Morte e Raquel Paosques. Na imagem vê-se a Morte sentada no banco do trem olhando diretamente para o observador que, no caso, atua como Raquel. ©Thiago David Vadilho (TD Vadilho).Unauthorized use strictly prohibited. -noimageai -noai

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Você costuma encontrar pessoas como eu? — perguntou a jovem.

Cada vez mais.

Então o que eu fiz não foi tão ruim assim…

Se essa é a conclusão na qual deseja chegar.

As duas voltaram a se encarar, sem dizer nada, e então o trem recomeçou com o seu sacolejar.

Espera — afobou-se Raquel. — Eu também tenho que descer!

Realmente tem — afirmou a figura. — Mas este não é o ponto em que você vai desembarcar.

Por quê? Existe mesmo céu e inferno?! O que eu fiz foi um pecado?!

Calma — sorriu a figura. — Eu não conheço nada do que tem lá fora. O meu papel é outro, eu só te acompanho até o trem parar. E como ele não te esperou, é porque você tem uma decisão a tomar.

Certo… — Raquel batucou os dedos algumas vezes como se estivesse tentando pensar, mas logo desistiu e resolveu perguntar: — Que decisão?

Se você vai partir, ou se você vai voltar.

Raquel deixou a cabeça pender para o lado.

Como assim partir ou voltar?

Você não me vê claramente…

A jovem concordou.

Porque o que você fez — continuou a figura —, ainda não determinou o fim que você vai tomar.

Raquel compreendeu.

Aquela garotinha, ela também teve a chance de voltar?

Não, ela não. O tempo que a foi dado se encerrou, não há mais nenhuma possibilidade de retornar.

Isso não me parece justo — comentou Raquel, embora sua mente estivesse focando em outro ponto que queria levantar.

O Tempo não se prende a sua justiça. Ele se doa a cada um na exata quantidade que deveria se doar. Eu não conheço o seu critério, mas sei que são vocês, humanos, que têm o vício de se ausentar.

Neste exato instante a mente de Raquel clicou e ela se levantou, pronta para atacar:

Espera aí! Você trouxe ela aqui para me provocar? A pobre criança doente que enfrenta tudo sem reclamar, e eu aqui, sem qualquer razão real para me rebelar. Típico…

A forma turva continuou plena, e esperou pacientemente Raquel terminar.

Acha que eu não sei que tem gente em situação pior do que a minha? Acha que isso me dá qualquer motivação para continuar?! Eu já tô cheia dessas merdas que vocês falam só pra irritar!

Não, Raquel. A passagem dela não foi uma lição para você mudar. Se fosse, você já teria dito que queria voltar. Fora o fato de vocês serem humanos, não há mais nada a se comparar.

Raquel coçou o pescoço e desviou o olhar.

Então — murmurou a jovem —, eu não estou entendendo. Por que ela estava aqui? Qual é o ponto em que você quer chegar?

É simples: ela estava aqui porque deveria estar. Você está aqui porque tem que optar por partir ou voltar. E eu… bom, não tenho ponto algum para chegar. Raquel cruzou o corredor e parou em frente a porta pela qual a criança havia acabado de desembarcar.

O que acontece se eu partir? — perguntou ela pouco depois.

Eu não sei — respondeu a figura.

E se eu voltar?

Menos ainda.

Raquel suspirou.

O que você espera de mim? Que eu volte, encontre uma psicóloga, um psiquiatra e passe a sorrir para tudo aquilo que a vida me mostrar?! Ou que eu decida partir de vez e fique a mercê do que a existência, ou a não existência, da pós-vida quiser me dar?

Eu não estou advogando em função de nenhuma dessas coisas, Raquel. Eu não estou aqui para te curar, e tão pouco para te libertar.

Então por que está aqui?!

Apenas para te acompanhar.

Raquel se afastou da porta e começou, a esmo, andar.

Por que isso está acontecendo?

Quem sabe… Escolhas, destino, karma, uma brincadeira do universo, uma punição em particular… São tantas as possibilidades que é tolice parar para pensar.

A jovem se irritou outra vez. A pergunta não havia sido direcionada para a figura; era mais um pensamento particular enunciado sem se notar.

Você tem alguma resposta para me dar?! — ralhou Raquel. — Porque aparentemente você não entende de bosta nenhuma!

A figura sorriu.

Eu não sou a resposta; e tão pouco tenho ela para te dar.

E isso não te incomoda?!

Não, não me incomoda.

Pois deveria.

A figura sorriu outra vez, deixando Raquel ainda mais irritada.

Não vai nem me perguntar o porquê?! — gritou a jovem.

Não, eu nunca faço perguntas.

E por que não?!

Porque aqueles que fazem perguntas demais passam a reproduzir pensamentos sem pensar.

Raquel descabelou-se.

Você não é nada, absolutamente nada, parecida com o que eu imaginava.

Ninguém nunca é.

Mas eu esperava algo de você.

Sinto muito por te desapontar.

Raquel contraiu o canto esquerdo dos lábios, levantou os ombros e sentiu o olhar embaçar. Ela murmurou um “Tudo bem…”, e se permitiu divagar no lugar.

Depois de algum tempo a jovem secou o molhado das bochechas e fungou.

Posso te perguntar uma última coisa antes de me decidir?

Por favor — respondeu a figura, de forma cordial.

Você conhece a angústia?

Conheço — respondeu. — Assim como conheço o Acaso, a Alegria, e o Amor. A Vida tem tantos filhos quanto você possa imaginar.

O que pode me falar sobre eles?

Tanto quanto poderia falar sobre você.

E o que poderia falar sobre mim?

Que você é uma passageira.

Raquel acenou com a cabeça, e o trem parou para ela desembarcar. A névoa instantaneamente tomou conta do entorno, e a figura foi lhe abraçar.

Você vai saber qual foi a minha decisão?

Um dia.

Quando?

Acho que quando tudo passar.

Raquel Paosques sorriu, e então desembarcou em algum lugar.

asssinatura TD Vadilho

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