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![]() Um rabisco. É isso. Nada mais… Sentada em um banco estofado estava uma jovem na casa dos 25. Ela sacolejava, de leve, balançando pra lá e pra cá. Sua respiração era serena, tão serena que gritava calmamente o seu aliviar. Suas pálpebras, ainda fechadas, eventualmente se contraiam, indicando que ela ainda não chegara por completo, mas estava na iminência de embarcar. Depois de algum tempo, sua boca começou a se abrir, e ela umedeceu os lábios, deixando o que restou da saliva voltar. Seu peito subiu carregando o peso restante, e o expulsou pelo ar. O alívio tomou conta por completo, e Raquel Paosques pode enfim acordar. Deu certo?, pensou ela, até olhar para a esquerda e só conseguir ver borrões passando pra lá. Raquel não estava mais ao pé de sua cama, e na sua frente não havia mais nada que ela pudesse usar para se machucar. Sim, com certeza deu certo, pensou por fim, deixando um leve sorriso escapar. O lugar era silencioso; mais silencioso do que se poderia imaginar. Talvez tenha sido por isso que Raquel demorou para notar. No banco, do outro lado do corredor, havia duas figuras sentadas, ocupando-se em conversar. A conversa, no entanto, era um tanto quanto estranha, porque se dava em uma frequência inviável para a jovem captar. Uma dessas figuras tinha o cabelo raspado e não deveria ter mais do que 11 anos de assunto para falar; já a outra tinha uma forma turva, irracional, inacessível e impossível de se interpretar. Remoendo-se de curiosidade, Raquel se levantou e começou a se aproximar. Ela chegou bem perto, porém, com um gesto sutil, a figura turva lhe pediu gentilmente para aguardar. Raquel assentiu e deu espaço para as duas terminarem de conversar. Ela não sabia exatamente como havia compreendido a mensagem, mas logo concluiu que o fato de ter dado certo só poderia uma coisa lhe indicar: aquela figura turva era Aquilo que ela tanto pensava em encontrar. A sensação de pressa não existia ali, e o tempo pouco parecia importar. Raquel Paosques ficou encarando os borrões até as duas terminarem de falar. Depois, pelos cantos dos olhos ela olhou a turvação se ajoelhar, ficando na altura da criança, para um abraço lhe dar. A criança se aconchegou no abraço, e depois sorriu ao gesticular, era como se dissesse adeus, indicando estar pronta para desembarcar. O que parecia ser um trem então parou, e a criança feliz se virou, descendo rumo a névoa que envolveu todo o lugar. Raquel olhou para o restante do vagão, fora Aquilo, não havia mais ninguém lá. Que sorte! pensou; ela seria a próxima à turvação abraçar. —Para onde a criança foi? — perguntou Raquel, mais preocupada em se fazer notar. A figura turva se sentou de frente para a jovem e respondeu: —Eu não sei. A voz era tão sincera e serena que levou a de Raquel a acuar, como se estivesse envergonhada demais para se mostrar. A figura não se mexeu, apenas continuou lá. Imperturbável, era o que ela parecia ser, aguardando Raquel conseguir se situar. —Então… — murmurou a jovem por fim — O que vai acontecer com a menina? —Eu também não sei — respondeu a figura. —Não sabe ou não quer me falar? — insistiu Raquel, carregando uma certa trepidação no olhar. —Eu realmente não sei, Raquel. —Isso… — pigarreou — isso não te incomoda? —Não — respondeu a figura sem vacilar —, não me incomoda. —Mas, você é ela… ou ele… ou Aquilo… enfim, é você, não é? —Eu sou ela. Ele. Aquilo. Pra mim tanto faz… Eu sou apenas o que sou, e jamais serei algo a mais. —Sei… — comentou Raquel sem saber. A forma sem forma, de alguma forma, sorriu com a boca e com o olhar. ![]() Arte disponível na loja —Você costuma encontrar pessoas como eu? — perguntou a jovem. —Cada vez mais. —Então o que eu fiz não foi tão ruim assim… —Se essa é a conclusão na qual deseja chegar. As duas voltaram a se encarar, sem dizer nada, e então o trem recomeçou com o seu sacolejar. —Espera — afobou-se Raquel. — Eu também tenho que descer! —Realmente tem — afirmou a figura. — Mas este não é o ponto em que você vai desembarcar. —Por quê? Existe mesmo céu e inferno?! O que eu fiz foi um pecado?! —Calma — sorriu a figura. — Eu não conheço nada do que tem lá fora. O meu papel é outro, eu só te acompanho até o trem parar. E como ele não te esperou, é porque você tem uma decisão a tomar. —Certo… — Raquel batucou os dedos algumas vezes como se estivesse tentando pensar, mas logo desistiu e resolveu perguntar: — Que decisão? —Se você vai partir, ou se você vai voltar. Raquel deixou a cabeça pender para o lado. —Como assim partir ou voltar? —Você não me vê claramente… A jovem concordou. —Porque o que você fez — continuou a figura —, ainda não determinou o fim que você vai tomar. Raquel compreendeu. —Aquela garotinha, ela também teve a chance de voltar? —Não, ela não. O tempo que a foi dado se encerrou, não há mais nenhuma possibilidade de retornar. —Isso não me parece justo — comentou Raquel, embora sua mente estivesse focando em outro ponto que queria levantar. —O Tempo não se prende a sua justiça. Ele se doa a cada um na exata quantidade que deveria se doar. Eu não conheço o seu critério, mas sei que são vocês, humanos, que têm o vício de se ausentar. Neste exato instante a mente de Raquel clicou e ela se levantou, pronta para atacar: —Espera aí! Você trouxe ela aqui para me provocar? A pobre criança doente que enfrenta tudo sem reclamar, e eu aqui, sem qualquer razão real para me rebelar. Típico… A forma turva continuou plena, e esperou pacientemente Raquel terminar. —Acha que eu não sei que tem gente em situação pior do que a minha? Acha que isso me dá qualquer motivação para continuar?! Eu já tô cheia dessas merdas que vocês falam só pra irritar! —Não, Raquel. A passagem dela não foi uma lição para você mudar. Se fosse, você já teria dito que queria voltar. Fora o fato de vocês serem humanos, não há mais nada a se comparar. Raquel coçou o pescoço e desviou o olhar. —Então — murmurou a jovem —, eu não estou entendendo. Por que ela estava aqui? Qual é o ponto em que você quer chegar? —É simples: ela estava aqui porque deveria estar. Você está aqui porque tem que optar por partir ou voltar. E eu… bom, não tenho ponto algum para chegar. Raquel cruzou o corredor e parou em frente a porta pela qual a criança havia acabado de desembarcar. —O que acontece se eu partir? — perguntou ela pouco depois. —Eu não sei — respondeu a figura. —E se eu voltar? —Menos ainda. Raquel suspirou. —O que você espera de mim? Que eu volte, encontre uma psicóloga, um psiquiatra e passe a sorrir para tudo aquilo que a vida me mostrar?! Ou que eu decida partir de vez e fique a mercê do que a existência, ou a não existência, da pós-vida quiser me dar? —Eu não estou advogando em função de nenhuma dessas coisas, Raquel. Eu não estou aqui para te curar, e tão pouco para te libertar. —Então por que está aqui?! —Apenas para te acompanhar. Raquel se afastou da porta e começou, a esmo, andar. —Por que isso está acontecendo? —Quem sabe… Escolhas, destino, karma, uma brincadeira do universo, uma punição em particular… São tantas as possibilidades que é tolice parar para pensar. A jovem se irritou outra vez. A pergunta não havia sido direcionada para a figura; era mais um pensamento particular enunciado sem se notar. —Você tem alguma resposta para me dar?! — ralhou Raquel. — Porque aparentemente você não entende de bosta nenhuma! A figura sorriu. —Eu não sou a resposta; e tão pouco tenho ela para te dar. —E isso não te incomoda?! —Não, não me incomoda. —Pois deveria. A figura sorriu outra vez, deixando Raquel ainda mais irritada. —Não vai nem me perguntar o porquê?! — gritou a jovem. —Não, eu nunca faço perguntas. —E por que não?! —Porque aqueles que fazem perguntas demais passam a reproduzir pensamentos sem pensar. Raquel descabelou-se. —Você não é nada, absolutamente nada, parecida com o que eu imaginava. —Ninguém nunca é. —Mas eu esperava algo de você. —Sinto muito por te desapontar. Raquel contraiu o canto esquerdo dos lábios, levantou os ombros e sentiu o olhar embaçar. Ela murmurou um “Tudo bem…”, e se permitiu divagar no lugar. Depois de algum tempo a jovem secou o molhado das bochechas e fungou. —Posso te perguntar uma última coisa antes de me decidir? —Por favor — respondeu a figura, de forma cordial. —Você conhece a angústia? —Conheço — respondeu. — Assim como conheço o Acaso, a Alegria, e o Amor. A Vida tem tantos filhos quanto você possa imaginar. —O que pode me falar sobre eles? —Tanto quanto poderia falar sobre você. —E o que poderia falar sobre mim? —Que você é uma passageira. Raquel acenou com a cabeça, e o trem parou para ela desembarcar. A névoa instantaneamente tomou conta do entorno, e a figura foi lhe abraçar. —Você vai saber qual foi a minha decisão? —Um dia. —Quando? —Acho que quando tudo passar. Raquel Paosques sorriu, e então desembarcou em algum lugar. ![]() Apoie as HistorietasO compartilhamento dessa história foi possível graças ao apoio dos leitores. Como forma de os homenagear e agradecer, deixo aqui alguns de seus nomes imortalizados nas páginas dessa historieta ❤️ ![]() DiretamenteApoie por PIX ou com a compra dos meus livros e ilustrações. Todas as contribuições e compras fazem uma enorme diferença! IndiretamenteCompras afiliadas geram comissões que me permitem continuar criando. 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Pequenos diálogos formam textos. Melhor ainda se tiver uma ilustração de inspiração!
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