Ilustração digital da vista do outro lado do lago Mótil. Chuva e bicicleta caida a direita, levando o observador a seguir o caminho que Gabi fez.
vetor do título do livro Há quanto tempo você não olha para as estrelas?
Ilustração de estrela amarela

A maioria das pessoas vivem como se

as estrelas não existissem. Acho que é porque

elas são de graça e ninguém nunca dá

valor ao que tem por garantido

A maioria das pessoas vivem como se as estrelas não existissem. Acho que é porque elas são de graça e ninguém nunca dá valor ao que tem por garantido

Romance Psicológico Ficcional | Drama

capa e contra capa do livro

Uma história paranormal e sincera, que fala sobre o tempo, depressão e coisas que importam

Essa história surgiu do limbo. Não era sobre estrelas, tampouco sobre o olhar. Essa história, na verdade, era apenas uma tentativa desesperada de alguém que, desesperadamente, ansiava por se encontrar.

Enquanto a escrevia, no entanto, descobri que haviam gritos entalados; gritos que o meu coração e a minha mente ansiavam por gritar. A partir daquele momento, percebi que não havia outra saída, aquela era a hora de esgoelar. E então, eu esgoelei, e eu mesmo escutei, porque aqueles eram gritos sinceros que eu precisava escutar. Após isso, a história de uma simples casa na árvore se metamorfoseou, agregando tudo aquilo que eu passei a enxergar.

Essa história surgiu na solidão da minha mente e na escuridão que fazia o meu coração gelar. Essa história surgiu no limbo, e do limbo, para que eu não retornasse mais lá. Essa história, por fim, virou algo que eu gostaria de compartilhar; para que você também não permita ao limbo se instaurar.

ilustração de um galho de uma tartaré no qual estão marcados os seguintes dados do livro: gênero: ficção; páginas: em breve; edição: 1ª ed.; editora: Flyve; papel: pólen 80g; capa: brochura; dimensões: 21x14cm; isbn: 978-65-00-84745-1; classificação indicativa: 14

Sinopse

Me perguntei quando foi que parei de olhar para as estrelas

E percebi que já fazia pelo menos um mês…

Talvez já fizesse um ano inteiro,

Talvez já fizesse até três.

[…]

Para falar a verdade,

Eu já não tinha mais ideia de quando fora a última vez.

O que me fez perguntar,

Se eu, realmente, já havia feito isso alguma vez.

Em meio às conturbadas férias de verão, Gabrielle Ávila foge da casa da avó e é convidada a subir em uma casa na árvore um tanto quanto peculiar, na qual o caminho do passado cruza com o caminho do presente e, dessa interseção, surgem novos olhares que fazem o conceito de viver se ressignificar.

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CAPÍTULO 1
SÓ ESTOU BRINCANDO UM POUCO COM VOCÊ, BOBINHA

Como de costume, uma vez ao ano, a família Ávila acordava de madrugada e se colocava na estrada, em meio à luz das estrelas e às lanternas do carro, rumo a uma cidadezinha chamada Lagunas, a qual ficava perdida na Região Sul do Brasil, entre a natureza calma, exuberante, e os planaltos do leste do Paraná.

  O começo da viagem era sempre tranquilo, mas o longo tempo dentro do carro — aproximadamente 12 horas — logo tornava o clima cansativo, principalmente quando a pequena Manuella, superentediada, resolvia escolher uma pobre alma para amolar e descontar o tédio.

  — Mãe! Olha a Manuella aqui, colocando esse pé sujo e gelado na minha cara de novo! Que droga! Não dá para entender essa menina — reclamou Gabrielle, irmã mais velha e alma desafortunada da vez.

  A mãe se remexeu no banco, mas optou por esperar.

  — “Num dá pra intendê essa minina!” — imitou Manu, contraindo os lábios em um bico apertado o suficiente para esbranquiçar os lábios e irritar a irmã.

  — Sai pra lá, coisa chata! — reclamou Gabi, mais uma vez, dando uma “travesseirada” na irmãzinha. — Ainda falta muito pra gente chegar à casa da vovó?

  Reclamar para a mãe era algo muito fácil de se fazer. Agora, conversar sobre qualquer outro assunto existente no mundo… nem tanto. Especialmente porque, alguns meses antes da viagem, algo havia mudado. Gabi não sabia o que era — até porque ninguém nunca lhe contava nada —, mas estava claro que o humor da mãe, que já costumava ser difícil, tinha ficado ainda mais instável.

  — Manuella Helena Ávila, não me faça perder a paciência… — alertou Débora, enquanto encarava a filha caçula pelo retrovisor. — Deixa a sua irmã quieta! — Voltou o olhar para a filha mais velha e completou: — Ainda faltam mais ou menos umas três horas, Gabi, e… Manuella, você não é invisível. Já mandei parar!

  — Mas, papai, olha aqui! — exclamou a pequena, apontando para a divisória do banco dos passageiros. — A Gabi tá ocupando o meu lado do banco. Tudo dessa linha aqui pra cá é meu, ó! Ela não pode passar. Tá errado!

  — Filha. Por favor, não começa… A sua mãe já falou com você, fica boazinha que daqui a pouco vamos chegar à casa da vovó e você vai poder se deitar em um sofá só seu, sem linha nenhuma para te atrapalhar.

  — Mas, papai…

  — Nem mais, papai, nem menos, papai — interrompeu Isaque, bastante orgulhoso do trocadilho realizado. — Agora, deixa eu prestar atenção na estrada que aqui é perigoso, passa bastante caminhão.

  Como de costume, o pai aumentou o som do rádio e se pôs a cantar da forma que só ele conseguia: completamente desafinado. Isaque dizia que era de propósito, para divertir a família e para impedir que a filha caçula continuasse a fazer birra, mas, no fundo — ou nem tão no fundo assim —, todo mundo sabia que aquele homem não tinha absolutamente nenhuma vocação para a música. Sério. Era tão ruim, tão ruim, que ele conseguia a proeza de desafinar até batendo palmas.

  Fosse como fosse, era melhor ouvir Isaque desafinar por alguns minutos do que ter um pé gelado e fedorento encostando na cara. Eu acho… É que, bom, seria mais fácil opinar se o pé tivesse encostado no meu rosto ou se, pelo menos, o Ávila tivesse escolhido uma música que — como eu posso dizer? — fosse um pouco “menos ruim”.

  “O relógio marcôôuu…

  São duas horas da manhã de um domingo.

  Cadê meu amôôrr?

  Estou sofrendo, sentado, isolado e sozinho.

  (…)”

  É. Complicado. Talvez as duas opções fossem péssimas, mas, enfim… Apesar dos rostos emburrados e dos chutinhos ocasionais no banco de trás do carro, a viagem até que seguiu de forma tranquila — pelo menos, para os quatro — e, três horas e alguns minutos depois, lá por volta das 19 horas, a família Ávila chegou ao seu destino, dando início às tão esperadas férias de verão de 2016.

  À frente da casa de número 07, da Rua Pinheiros, a senhora Isabel, mãe de Isaque, esperava ansiosa pela família.

  — Sejam bem-vindos, meus amores! Que saudade que eu estava de vocês! — exclamou Isabel, com um baita sorriso estampado no rosto. — Olha só o que a vovó preparou! E tem mais, acabei de passar um cafezinho e assar um pão de banana também. Venham! Vamos entrar e comer enquanto está tudo quentinho.

  — Oi, vovó! — gritaram as duas garotas em coro, enquanto corriam para receber os beijos, encher as mãos de biscoitos e disputar a poltrona da sala.

  — Isaque, Débora! Venham. Deixem as malas aí que depois eu pego tudo — anunciou Isabel.

  E olha que ela realmente pegaria tudo sozinha. Se o filho e a nora deixassem, é claro. Embora já estivesse com 61 anos, a senhorinha de alma jovem conservava uma saúde de dar inveja.

  — Imagina, Isabel! — disse Débora. — Vão entrando, vocês três. O Isaque e eu vamos descer as malas primeiro. É rapidinho, não vai demorar nada.

  — , e por acaso eu estou em um caixão para ficar parada? — Isabel fingiu reclamar, já com uma mala em uma mão e a forma de biscoitos em outra. — Eu, hein…!

  — N-Não, é claro que não. É que…

  Isaque riu.

  — Eu sei, minha filha — interrompeu a senhora, com todo o carinho do mundo, já prestes a subir as escadas da varanda para entrar na casa. — Só estou brincando um pouco com você, bobinha.

  A nora ficou sem jeito; mesmo depois de tantos anos, nunca se acostumara com as brincadeiras da sogra.

  — Relaxa um pouco, amor — aconselhou Isaque, beijando a esposa e partindo atrás da mãe, em direção ao seu antigo lar. — Ela só quer te ver sorrir para a vida.

  Débora pareceu ensaiar um sorriso pelas costas do marido, mas logo desistiu e o seguiu. A sua cabeça estava em outro lugar, ocupada demais para tentar sorrir.

  Para entrar na casa, era preciso passar primeiro por um caminho de cascalhos naturais que serpenteava por entre um vasto gramado e uma horta colorida, ligando a rua aos degraus da escada da varanda. Você pode se imaginar fazendo esse caminho sem desviar o olhar ou, se me permitir recomendar, você pode desviá-lo a todo instante, realmente o máximo que puder, para poder apreciar a coleção de sapinhos, gnomos e plaquinhas de madeira, com mensagens do tipo “Sejam bem-vindos!”, “Lar doce lar!” e “Vem sorrir comigo!”, que estava espalhada por cada cantinho do quintal.

  Se escolher a primeira opção, tudo bem, o caminho permanecerá o mesmo, não tem problema. Porém, se escolher a segunda, é certo que, ao se imaginar entrando naquela casinha de madeira amarela, coberta por um telhado com lambrequins marrons e cheia de orquídeas e lírios do campo, a sua experiência será muito, muito melhor mesmo. Ainda mais se você aproveitar para pegar algumas balinhas de iogurte ou de doce de leite que a senhora Isabel sempre deixava em potinhos sobre a mesinha da varanda, entre as duas velhas e confortáveis cadeiras de balanço almofadadas.

  Já, por dentro, a casa da avó coruja era bastante simples, não tinha praticamente nada que alguém vindo da capital de São Paulo, como os quatro Ávilas, estivesse acostumado. Os pontos máximos de tecnologia se resumiam a uma batedeira elétrica — que Isabel ganhou no bingo da igreja —, uma televisão de 32 polegadas — que vivia ligada no famoso “canal novela” —, fogão, geladeira e um telefone original de disco, baquelite, vermelho vivo — uma relíquia incrivelmente bonita.

  Agora que você já se situou um pouco ao local, peço que me acompanhe até a cozinha, onde, depois de se empanturrarem, Isaque e Isabel conversavam baixinho, enquanto Débora colocava os lençóis nas camas para as garotas se deitarem.

  — O médico ajudou? — perguntou Isabel.

  — Não… Quer dizer, ela parou de ir.

  — Parou?! Por quê?!

  — Ela tem bastante dificuldade para lidar com novidades. E quando chegam todas juntas, as coisas ficam… complicadas. Bem complicadas.

  O silêncio se fez presente por alguns segundos, enquanto Isabel parecia pensar sobre a situação.

  — E o dinheiro? — perguntou ela, com um olhar bastante sugestivo. — Por acaso tem alguma relação?

  — Sim e não. Ela usou como desculpa, mas eu já deixei claro que quanto a isso ela não tem com o que se preocupar. É mais um mecanismo de fuga, sabe?

  — Sei… E as meninas, como estão lidando?

  Isaque arqueou as sobrancelhas e suspirou.

  — Acho que a Manu só percebe o clima nos dias mais complicados, mas a Gabi anda bastante estressada. A minha esperança está depositada nestas férias. As três estão precisando de um novo ar para respirar.

  — Os quatro precisam, filho.

  — É… Tem razão — concordou Isaque, em meio a um longo e pesado bocejo.

  — Tá cansado, né? Pode ir se deitar, eu já, já tô indo também.

  — Só tô esperando.

  — Esperando o quê? — perguntou Isabel.

  — Não é o quê, mas sim quem.

  Nem um segundo se passou direito e Manu entrou na cozinha, carregando o livro Meu Pequeno Amigo Imaginário entre os braços.

  — Esse serzinho — anunciou Isaque.

  Isabel soltou o riso.

  — Papai, vamos? — perguntou Manu.

  — É nossa nova tradição. Acho que já é a vigésima vez que vamos ler — contou Isaque, com um leve sorriso. — Boa noite, mãe.

  — Boa noite, vovó.

  — Boa noite para vocês, meus amores.

  Isaque pegou a filha no colo, beijou a bochecha da mãe e caminhou em direção ao seu antigo quarto.

  Isabel arrumou a mesa e, logo em seguida, foi se deitar. Debaixo das cobertas, ela ainda teve tempo para sorrir e aproveitar a conversa que acontecia no quarto ao lado:

  — Como vai ser o nosso amigo dessa vez? Um gato? Um cachorro? — perguntou Isaque.

  — Um cachorro — respondeu Manu.

  — E como ele vai se chamar?

  — Humm… Gatinho.

  — Ué! — exclamou o pai.

  — Ué! — repetiu a caçula, em meio ao riso, pouco antes de ceder ao sono.

  Pouco depois, a casa toda a acompanhou.

CAPÍTULO 2
ACONTECEU JÁ HÁ MUITO TEMPO

Eram seis horas da manhã seguinte, quando Isabel acordou e, enquanto os ainda tímidos raios de sol atingiam o orvalho que revestia o gramado e a horta do lado de fora da casa, a mesa do café da manhã ia sendo posta, acordando aos poucos o restante da família, com a mistura de aromas exalados.

  Como de praxe, Gabi foi a primeira dos quatro a se colocar de pé, e logo entrou na cozinha para beijar a avó e começar a comer, já pensando em sair para andar de bicicleta.

  Gabrielle estava em uma fase um tanto quanto estranha da vida, ela tinha 13 anos e não sabia muito bem onde se encaixava no mundo. De um lado, parte das amigas estavam preocupadas com garotos, maquiagens, baladinhas e fotos para redes sociais; do outro, o restante das amigas ainda estavam totalmente focadas em simplesmente brincar e realizar as atividades da escola. Era confuso, porque um grupo subitamente deixou de falar com o outro e Gabi se sentia perdida em meio à confusão das suas vontades. Mas, ao mesmo tempo, era reconfortante saber que ela estava longe e poderia agir sem se preocupar com o que os outros iriam pensar.

  Não muito tempo depois, Isaque, que havia acordado há uns 30 minutos, enfim, reuniu a coragem necessária para se levantar da cama quente e confortável e acompanhar as duas à mesa.

  — Bom-dia — desejou ele, beijando as testas da mãe e da filha.

  — Bom-dia, meu filho! Dormiu bem?

  — Dormi, sim, mãe.

  — É… Bom-dia… papai — cumprimentou Gabi, mastigando e, ao mesmo tempo, preparando o próximo pedaço de pão de queijo com ketchup.

  Se você estiver pensando que essa mistura é uma loucura, é porque nunca experimentou… Sério. Experimenta. “Mas no café da manhã?!”, você pergunta. Pff… Só bota o ketchup aí, vai. Confia.

  — Saiu alguma coisa interessante no jornal de hoje, mãe? — Isaque perguntou.

  — Interessante? Humm, vamos ver… — anunciou Isabel, enquanto folheava as páginas. — Ah, olha só! Parece que a mascote da escola deu cria no final da tarde de ontem. Nasceram sete miniporquinhos bem saudáveis. Quatro machos e três fêmeas. E essa aqui, ó! — exclamou ela, apontando para a foto de uma porquinha malhada. — É a Rafaela Gritinho. Uma gracinha, não acha?

  — Awn, que fofa, vó! — exclamou Gabi, de imediato.

  — Isso é interessante o bastante para você? — perguntou a senhora Isabel, dirigindo uma piscadela para a neta.

  — Não muito… Quer dizer, é um nome até que interessante para uma porquinha. Rafaela Gritinho… Eu deveria ter dado esse nome para você, Gabi — sugeriu Isaque, rindo.

  O riso contagiou a mãe e, logo em seguida, a filha que deixou escapar os seus oincs em meio à famosa risadinha de porco.

  — Você sabe como são as coisas aqui, filho. Não costuma ter muita novidade. A coisa mais “interessante” — enfatizou, simulando aspas com os dedos. — Aconteceu já há muito tempo, antes de eu sequer ter pensado em ter você. Então, vamos deixar essa preocupação de lado e aproveitar o café da manhã. Preparei tudo com muito carinho.

  Mesmo tendo percebido a clara tentativa de desviar o assunto, Gabi não pôde se controlar e, antes que se desse conta do que fazia, vários farelos de uma torrada saíram voando da sua boca, enquanto perguntava desesperadamente o que havia acontecido; quase como se a resposta fosse dar um novo sentido à sua vida ou, quem sabe, ser a solução para os seus problemas.

  Isabel olhou para Isaque que respondeu com uma rápida arqueada das sobrancelhas. Ele não esperava nada de diferente da filha curiosa, mas também não se importava que a história fosse relembrada.

  — Ai, ai… Acho que eu pedi, né? — perguntou Isabel.

  — É, eu vi a bola quicando devagarinho, prontinha para ela chutar — respondeu Isaque.

  — Tem razão… Bom, vamos lá, então — começou a avó, quando foi interrompida pelo sinal discreto do filho, indicando com a cabeça que a esposa vinha atravessando a sala de estar, em direção à cozinha.

  — Então…? — incentivou Gabi, arregalando os olhos e esticando o pescoço em direção à avó.

  — Te conto depois, meu anjo.

  Por um instante, pareceu que os olhos de Gabi fossem saltar do rosto, mas ela os conteve quando percebeu que a mãe estava por perto. Ainda que não fizesse o mínimo esforço para esconder a canseira e o aborrecimento que sentia ao ter que pisar em ovos perto da mãe, era melhor não insistir, a fim de não provocar uma briga tão cedo e, principalmente, logo nas férias.

  eguindo a sua rotina, Débora distribuiu beijos nas bochechas de cada um e foi para o fogão, preparar a sua xícara de café pingado, pouco adoçado, e leite com achocolatado para a pequenininha que ainda estava do outro lado da sala, perto da porta do quarto, andando a passos lentos e arrastando o travesseiro pelo chão, à medida que tentava, quase que em vão, manter um dos olhos minimamente aberto para vencer a árdua — e aparentemente impossível — batalha contra o sono.

  Não é que Débora fosse o tipo de mãe superprotetora — pelo menos era o que ela costumava dizer; Gabrielle discordava veementemente dessa afirmação —, mas ela preferia que assuntos mais sérios ficassem somente entre os mais velhos. Segundo o seu plano de criação, suas filhas deveriam saber apenas de coisas relativas às suas idades, ou seja: estudar, brincar e ponto-final. O restante, não só poderia como também deveria aguardar. E se tratando de uma preferência reivindicada pela mãe, o restante da família compreendia que o mais correto seria, na realidade, interpretá-la como uma regra, passível de punição mediante qualquer ínfima tentativa de transgressão.

  Após o farto café da manhã, Gabi foi em direção ao banheiro, pegou a escova de dentes e ficou fazendo cena na sala, fingindo estar de olho em Manu que preparava o pincel e os potinhos de tinta para pintar o desenho de um unicórnio que, na verdade, era um cavalo com uma casquinha de sorvete grudada na testa. O fingimento, no entanto, era só uma desculpa para ficar atenta à movimentação na cozinha durante o tempo em que aguardava ansiosamente pela saída da mãe que estava tentando ajudar o marido a lavar a louça.

  — Ora! Por favor, deixem a louça aí, vocês são visitas, poxa! Vão descansar, aproveitar a vista, ler um livro, relaxar, caminhar, dormir mais um pouco, sei lá… Qualquer outra coisa que não envolva trabalho — reclamou a senhora da casa, já pela segunda vez.

  Vencida pela insistência, Débora puxou o marido pelas mãos e os dois foram para a varanda, aproveitar a vista daquela manhã sossegada na cadeira de balanço que tanto gostariam de ter no apartamento em que moravam.

  Mal os pais saíram e Gabi correu para a pia do banheiro, encheu a boca de água, fez bochecho e cuspiu. Tudo em tempo recorde. Depois, como um furacão, voltou para a cozinha. O esforço para saciar a curiosidade era tamanho que seria capaz de deixar com inveja até a mais aplicada das fofoqueiras do bairro.

  Ao presenciar a cena, a avó não precisou de qualquer explicação. Com os cantinhos dos lábios levantados e expirando uma pequena quantidade de ar pelo nariz, Isabel foi se sentar à mesa, pronta para contar uma história “interessante” para uma neta sedenta:

  — Há muitos anos, em 1969, uma família se mudou para cá. É, eu sei. Isso, por si só, já seria um fato estranho, porque normalmente as pessoas se mudam daqui, mas você vai entender já, já — antecedeu Isabel, acalmando a neta que já estava pronta para liberar o ponto de interrogação entalado na garganta. — A família Jackson era um tanto quanto… complicada, eu diria. Acho que essa seria a melhor definição a ser utilizada.

  — Complicada como? — indagou Gabi, sedenta por mais detalhes.

  — Antes de se mudarem para cá, o senhor e a senhora Jackson eram muito ricos. Muito mesmo. Na época, meu pai chegou a me contar que eles tinham como único propósito de vida acumular mais e mais dinheiro e, por isso, viviam no trabalho e para o trabalho; basicamente escravos da empresa que dirigiam. Devia ser uma rotina bem vazia e meu pai fez questão de dar ênfase a esse fato ao me alertar para algo importantíssimo sobre a vida: “A falsa segurança do ter, move o homem a perder”… Nunca me esqueci disso e espero nunca me esquecer. Foi provavelmente o conselho mais valioso que ele teve tempo de me dar.

  Gabi não teve certeza se entendeu o que o bisavô quis dizer. No entanto, pareceu-lhe uma frase importante demais para ser descartada. Sendo assim, a menina a guardou na mente e, em seguida, acenou, dando liberdade para que a avó continuasse.

  — Um dia, essa empresa foi obrigada a fechar as portas. Segundo as notícias e as fofocas da época, o casal Jackson estava completamente atolado em dívidas por conta de vários esquemas de corrupção malsucedidos. Coisas como manipulações, fraudes, chantagens, propinas e por aí vai… Não sei ao certo o que foi, mas, como era coisa ruim, não era de se admirar que mais dia, menos dia a verdade fosse vir à tona, não é?

  — Eita! Então, eles foram presos? — perguntou a menina, totalmente centrada na história, mas com certa inocência no pensamento.

  Isabel lentamente balançou a cabeça de um lado para o outro.

  — Você sabe como é, meu anjo. No final das contas, sobra sempre para o lado mais fraco — comentou a avó, encolhendo os ombros e estendendo as palmas das mãos, em um claro sinal de desaprovação. — Os dois tinham muita influência e deram um jeitinho de fugir para cá. Só sei que saíram do Rio de Janeiro devendo um mundaréu de dinheiro para um mundaréu de funcionários.

  — Típico…

  — É. Só que, hoje em dia, infelizmente, isso não tem nada de tão incomum assim. O que aconteceu depois é que foi interessante — ressaltou Isabel, perguntando-se se interessante era realmente a palavra mais adequada para se utilizar.

  Ao ouvir isso, Gabrielle se arrastou para a beirada da cadeira, ficando tão colada na mesa que parecia estar tentando atravessá-la como um fantasma.

  — O casal tinha um filho que devia ser um ano mais novo do que eu. Se era 1969, eu tinha… — Pensou Isabel, fazendo as contas nas pontas dos dedos. — Quatorze?

  — Aham. E ele, treze.

  A avó sorriu e tornou a falar:

  — Eu já nem me lembro muito bem do rosto dele, mas do nome não tem como eu me esquecer. Ele se chamava Darwin. Bem diferente, não acha?

  — Darwin… Acho que nunca conheci ninguém com esse nome. Só aquele cara lá da… Biologia? — perguntou-se a menina. — Mas é bem diferente mesmo. Eu gosto de nomes assim — comentou ela.

  — Eu também gosto. Achei o nome bem bonito quando descobri. Ele contou uma vez, para a Analu, que foi uma homenagem para o bisavô que veio como imigrante da Inglaterra para o Brasil — disse Isabel, propositalmente divagando no intuito de determinar como prosseguir com a história.

  — Interessante — mentiu a menina. Aquele não era o tipo de detalhe que ela procurava e a avó logo percebeu, porque os grandes olhos cor de âmbar de Gabi nunca mentiam.

  — Enfim, Darwin era um menino muito quieto que vivia cabisbaixo, tentando esconder o semblante triste que carregava no rosto.

  — Por quê?

  — Porque, meu amor, em algum momento, o mundo se tornou tão cheio que transbordou e se transformou em um excelente lugar para se preencher do vazio. — Gabi ficou confusa, mas Isabel prosseguiu mesmo assim: — Algumas pessoas fazem isso com maestria, porque conseguem dosar, já outras, como Darwin, nem tanto.

  — E o que é esse tal “vazio”?

  — É difícil de explicar. Na verdade, é impossível, porque o vazio pode ser tudo, mas, ao mesmo tempo, pode não ser nada. Depende de cada pessoa.

  — E o que era para o Darwin?

  — Acredito que era a solidão.

  — Coitado… — sussurrou Gabi.

  Isabel concordou e, dessa vez, de forma inevitável, divagou por mais algum tempo, pensando sobre a situação e sobre o quanto ela se aplicava à relação da nora com as crianças.

  — Bom, continuando… — Despertou a avó, depois de dois ou três minutos em silêncio. — Darwin entrou na escola e teve uma adaptação bastante difícil. As crianças viviam apontando os dedos e fazendo fofocas a respeito dele e da família; eventualmente, até mesmo alguns funcionários faziam isso. Pensando hoje, tenho certeza de que foi algo bem incômodo, até mesmo humilhante… Só que era complicado, sabe? Cidade pequena, todos se conhecem. — Isabel deu de ombros. — As notícias nunca ficam em segredo, ainda mais quando a história parecia mais ter vindo de um roteiro de radionovela do que da realidade.

  — Se lá na minha escola já seria um caso de fofoca, imagino como foi aqui — comentou a menina, compreendendo a dificuldade, ao mesmo tempo em que se perguntava o que diabos era uma radionovela.

  — Alguns dos professores até tentaram contornar a situação, só que não teve jeito. Depois de cerca de um ano, o garoto decidiu abandonar tudo. Literalmente tudo, Gabi. E no comecinho de janeiro, de 1970, o Darwin preparou uma mochila com água, comida, um livro e umas roupas limpas e sumiu pela madrugada inesperadamente gelada.

  Gabi ficou surpresa. Estava certa de que o clímax teria acontecido na escola.

  — E o que os pais dele fizeram? — perguntou a menina.

  — De início, os Jacksons não fizeram muita coisa, não. Para ser bem sincera com você, acho que eles não aparentavam nem estarem preocupados… Assim como a polícia, o casal achou que o garoto iria desistir logo, por conta do frio e de um provável arrependimento, e voltaria até, no máximo, o final daquela tarde.

  — Meu Deus…

  — Pois é. Só que, como você já deve imaginar, não foi o que aconteceu. O Darwin não voltou, Gabi, e, na manhã seguinte, a escola fez um mutirão para tentar ajudar os policiais que, finalmente, resolveram se interessar pelo caso. Eu participei nos primeiros dias; andamos pela vizinhança, checamos os celeiros, os porões das casas, o porão da escola e olhamos na igreja também. Mas não adiantou. Só foram encontrar algo no terceiro dia das buscas, quando os adultos se embrenharam no bosque da outra margem do lago Mótil.

  — E o que eles encontraram?! — perguntou Gabi, de imediato, vidrada na história e ansiosa pela resposta.

  Isabel abaixou o olhar, fez uma longa pausa e, depois de umedecer os lábios e a garganta seca, continuou. Dessa vez, com um tom de voz muito mais baixo:

  O estômago de Gabi embrulhou ao, inevitavelmente, imaginar a cena de um corpo gelado, acinzentado, estirado, morto e solitário no bosque. A garota ficou tão desconfortável que não sabia como reagir. Primeiro, por conta da morte que lhe pareceu terrível e, segundo, porque se sentiu arrependida em ter sido tão incisiva na sua curiosidade. Percebendo o desconforto da neta, Isabel procurou dar um fim mais ameno para a narrativa:

  — É, meu amor, às vezes, coisas não muito legais acontecem pelo mundo afora, mas a gente precisa ter esperança e torcer para que as pessoas pelas quais zelamos estejam bem… Seja lá onde estiverem — sugeriu a avó, enquanto sutilmente acariciava o medalhão dourado que sempre carregava em uma correntinha presa ao pescoço.

  — 1970… — ponderou a neta. — Foi naquele ano? — perguntou, pouco depois.

  — Sim…

  Gabi colocou as mãos sobre a mão esquerda da avó que tremia levemente em cima da mesa.

  Achou que eu iria contar o que aconteceu nesse mesmo ano? Achou errado, querido(a) leitor(a) ~ complete aqui se pegou a referência! Haha. Vou pausar a história aqui, na esperança de que você tenha lido o suficiente para querer pegar o livro e continuar. Muito obrigado por ter chegado até esse ponto, e fique bem! Ah, não se esqueça, essa história ainda tem muita coisa para contar…

Detalhe da capa do livro, focando nas asas e texturas da borboleta
Detalhe do interior do livro, focando no capítulo 'há quanto tempo você não olha para as estrelas?'
Abre aspas

"A narrativa é desenvolvida de uma forma bonita quase poética, principalmente na parte sobrenatural da trama, envolvendo o leitor em um realismo mágico, que após a explicação final levará o leitor a se emocionar (por aqui eu enchi os olhos de lágrimas)."

— @Doidosporserieselivros

Abre aspas

"Me senti parte da família Ávila. Quis tomar café com a Dona Isabel; quis dar um sossego na irmã mais nova; quis ter o Isaque de pai; e o principal: quis ter a Gabi como amiga. E de certa forma tive, porque eu me irritei, tive medo, ri e chorei com ela. Obrigado por esse livro, Thi. Já tô doido para o próximo."

— Bruno Scandolara

Nas Palavras dos Leitores

Nuvem de palavras aberta a todos :)
ilustração de um cordão de pisca pisca Nuvem de palavras para descrever o livro. Construída pelos leitores

Última atualização: 14/10/2024

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E se eu disesse que é a obra favorita da dona Neusa?

Quem é dona Neusa? Foi isso mesmo que escutei? Quem é dona Neusa?! Pff... Minha avó, ué!

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©Thiago David Vadilho (TD Vadilho). Todos os direitos reservados.